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  • O Desespero da Piedade – Vinicius de Moraes

    http://www.youtube.com/watch?v=NP4p6nY4YIc

    Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
    E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos…
    Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
    Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

    Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
    E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
    Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
    E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

    Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
    Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
    Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
    E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

    Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
    Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
    Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
    E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

    Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
    E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
    Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
    E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

    Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
    Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
    E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
    Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão…

    Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
    Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
    Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
    Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

    Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
    Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
    Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
    Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

    Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
    Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
    Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
    Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

    Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
    Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
    Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
    Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

    E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres
    Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
    Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
    Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

    Tende piedade da moça feia que serve na vida
    De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
    Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
    Que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!

    Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
    Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
    E sonham exaltadas nos quartos humildes
    Os olhos perdidos e o seio na mão.

    Tende piedade da mulher no primeiro coito
    Onde se cria a primeira alegria da Criação
    E onde se consuma a tragédia dos anjos
    E onde a morte encontra a vida em desintegração.

    Tende piedade da mulher no instante do parto
    Onde ela é como a água explodindo em convulsão
    Onde ela é como a terra vomitando cólera
    Onde ela é como a lua parindo desilusão.

    Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
    Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
    Mas tende piedade também das mulheres casadas
    Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

    Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
    Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
    Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
    E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

    Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
    De corpo hermético e coração patético
    Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçada
    Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

    Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
    Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
    Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
    Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

    Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
    Que são crianças e são trágicas e são belas
    Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
    E que têm a única emoção da vida nelas.

    Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
    Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
    E outra, à simples emoção do amor piedoso
    Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

    Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
    A vida fere mais fundo e mais fecundo
    E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
    E a loucura reside nesse mundo.

    Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
    Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim
    Piedoso com todos, que tudo merece piedade
    E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim

  • Recado de Primavera – Rubem Braga a Vinicius de Moraes – 1980

    Meu caro Vinicius de Moraes,

    escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave:
    a primavera chegou.

    Você partiu antes. É a primeira primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação.

    Seu nome virou placa de rua e nessa rua que tem seu nome na placa vi ontem 3 garotas de Ipanema que usavam mini-saias. Parece que a moda voltou nessa primavera. Acho que você aprovaria.

    O mar anda virado. Houve uma lestada muito forte, depois veio um sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violencias primaveris.

    O tempo vai passando poeta, chega a primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui — a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor.