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  • Serradura – Mário de Sá Carneiro

    A minha vida sentou-se
    E não há quem a levante,
    Que desde o Poente ao Levante
    A minha vida fartou-se.

    E ei-la, a mona, lá está,
    Estendida, a perna traçada,
    No infindável sofá
    Da minha Alma estofada.

    Pois é assim: a minh’Alma
    Outrora a sonhar de Rússias,
    Espapaçou-se de calma,
    E hoje sonha só pelúcias.

    Vai aos Cafés, pede um bock,
    Lê o “Matin” de castigo,
    E não há nenhum remoque
    Que a regresse ao Oiro antigo!

    Dentro de mim é um fardo
    Que não pesa, mas que maça:
    O zumbido dum moscardo,
    Ou comichão que não passa.

    Folhetim da “Capital”
    Pelo nosso Júlio Dantas –
    Ou qualquer coisa entre tantas
    Duma antipatia igual…

    O raio já bebe vinho,
    Coisa que nunca fazia,
    E fuma o seu cigarrinho
    Em plena burocracia!…

    Qualquer dia, pela certa,
    Quando eu mal me precate,
    É capaz dum disparate,
    Se encontra a porta aberta…

    Isto assim não pode ser…
    Mas como achar um remédio?
    – Pra acabar este intermédio
    Lembrei-me de endoidecer:

    O que era fácil – partindo
    Os móveis do meu hotel,
    Ou para a rua saindo
    De barrete de papel

    A gritar “Viva a Alemanha”…
    Mas a minh’Alma, em verdade,
    Não merece tal façanha,
    Tal prova de lealdade…

    Vou deixá-la – decidido –
    No lavabo dum Café,
    Como um anel esquecido.
    É um fim mais raffiné.

    Serradura – Mário de Sá Carneiro

    Paris – Setembro 1915